O meu avô paterno, Veríssimo Augusto, que não cheguei a conhecer, era "carioca". Terá vindo para Portugal na juventude, para cursar medicina, em Coimbra. E por cá ficou. Seguramente que herdei dele, apesar do meu pai, uma parte dos genes que me inventaram. Não estranheis o advérbio: o facto é que o meu pai raramente falava do meu avô e, quando o fazia, contava o menos possível e de uma forma quase contrafeita. Na viragem do século, de dezanove para vinte, os meus bisavós paternos (rezam as crónicas) eram prósperos industriais de panificação no Rio de Janeiro. Suponho que, depois da morte dos meus bisavós, o negócio não ficou na família, mas, pelo pouco que ouvi contar, sei que a gestão da herança não foi pacífica. O meu pai, pelo menos, evitava falar do assunto...
No Liceu Nacional Sá de Miranda, que frequentei, um dia fui chamado ao gabinete do Reitor. Era uma figura enorme, que as alcunhas pouco cordiais, de resto, sublinhavam. Naquela época, nenhum aluno era chamado ao Reitor pelas melhores razões. Embora não me pesasse a consciência (eu era, na altura, um adolescente bem comportado) de ter transgredido as normas, a verdade é que o inesperado da convocatória deixou-me em sobressalto. Alguma patifaria (a culpa dormia sempre comigo) eu devia ter cometido (ou alguém por mim)... Mas não, o Reitor não queria admoestar-me, nem castigar-me: queria, apenas, chamar a minha atenção para uma fotografia antiga, solenemente encaixilhada, que descia de uma das paredes do gabinete. Era uma fotografia de grupo, fixada, se bem me lembro, nos anos quarenta. O Reitor pediu-me que observasse bem a fotografia e que lhe dissesse se, no grupo retratado, reconhecia alguém. Nos meus doze ou treze anos, quem é que eu poderia reconhecer? A medo, respondi que não. O Reitor retirou então o caixilho da parede, pousou-o sobre uma mesa e, um a um, começou a dizer-me os nomes dos retratados, um dos quais (um dos mais jovens) era ele próprio. Quando já só lhe faltava identificar um dos elementos do grupo, ele apontou-o com um dedo (que, no momento, me pareceu imenso) e voltou a perguntar-me se o reconhecia. A minha atrapalhação fê-lo abreviar a tortura: explicou-me que era... o meu avô. Foi a primeira vez que vi uma imagem do meu avô paterno. O Reitor esclareceu-me que ele fora, durante muitos anos, o médico do Liceu. E rematou a sabatina, antes de me despachar, sublinhando que eu teria sempre de honrar, como aluno, a ilustre memória do meu avô... Devo ter gaguejado alguma coisa em jeito de compreensão e assentimento e voado dali, meteoricamente, antes que algum "crime" me fosse, finalmente, imputado (como eu receara). Se a memória não me engana, não contei a ninguém, nem em casa, o que se passara. Se ninguém falava do meu avô Veríssimo, por alguma razão seria: calei-me.
Percebi mais tarde por que o meu pai evitava falar do pai dele. Não era "exemplo" que ele desejasse apontar à magra descendência (eu e a minha irmã). O meu avô, que era dado à escrita, à política e ao jornalismo, não tivera filhos da "esposa legítima" (que, pelos vistos, desapareceu depressa da sua vida) e entretivera-se a engravidar, "en passant", mulheres que seduzia (incluindo aquela que terá sido a minha avó paterna e que o meu pai, suponho, não terá chegado a conhecer). Mais grave ainda: sem os rejeitar, ele não "perfilhara" os filhos (o meu pai ostentava apenas o apelido da mãe). E, apesar de médico, investira muito pouco na sua (deles) educação e formação. Embora o meu pai (de resto, sempre muito pouco loquaz) evitasse tocar no assunto, sempre ficou claro para mim que ele sofria, amarguradamente, a memória do meu avô, preferindo não falar dele. Sem mãe e quase sem pai, "educado" por uma "criada" que ele tratava, delicadamente, por "mãezinha" (e que terá sido a minha "madrinha" de baptismo), imagino como a infância lhe terá sido dolorosa e como o terá marcado, terrivelmente, para sempre. Morreu prematuramente, sem ter conseguido ganhar o afecto do único filho varão. Ironias que o destino tece...